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O Brasil vive um crescimento acelerado na construção de datacenters, impulsionado pela demanda de inteligência artificial, computação em nuvem e big data. Empresas como Amazon, Microsoft e ByteDance estão expandindo suas operações no país, atraídas por energia relativamente limpa (hidrelétrica) e incentivos fiscais.
Contudo, surge um alerta: esses centros de dados exigem volumes gigantescos de eletricidade e água. Enquanto empresas erguem megainfraestruturas digitais, comunidades em regiões como Novo Aripuanã (Amazonas) enfrentam racionamento de energia, segundo denúncia recente do jornal The Guardian (2025).
Essa discussão transcende a sustentabilidade ambiental — ela atinge também a preservação da memória digital. Afinal, toda a história computacional contemporânea, incluindo acervos, backups, e dados culturais, depende fisicamente desses datacenters. A pergunta que fica é: como garantir que o crescimento tecnológico não comprometa o acesso e a preservação do nosso próprio legado digital?
Essa é essência de um dos mais graves problemas contemporâneos da preservação digital e da soberania cultural: a desmaterialização aparente do conteúdo, que não elimina sua dependência de uma infraestrutura física — mas desloca o controle dessa infraestrutura do usuário para grandes corporações.
Esse fenômeno, tecnicamente chamado de "efemeridade digital corporativa", significa que todo conteúdo que hoje acessamos na chamada “nuvem” está sob gestão privada, frequentemente guiada por critérios de mercado, obsolescência programada e maximização de lucro — não por critérios de preservação histórica, cultural ou patrimonial.
🔍 Consequências diretas deste modelo:
Perda de Soberania Digital:
O usuário não detém mais a posse dos bens digitais. Licenciamos o acesso temporário, revogável a qualquer momento.
Obsolescência programada digital:
Empresas descontinuam produtos e serviços sem qualquer compromisso de preservação. Exemplos são jogos digitais, softwares, filmes e até cursos que desaparecem simplesmente porque "não dão mais retorno".
Risco à memória histórica:
Se museus, colecionadores e instituições não se mobilizam para criar acervos físicos e cópias locais, tudo se perde no primeiro desligamento de servidor ou na falência de uma empresa.
Dependência energética e ambiental:
A ilusão de que a “nuvem” é imaterial esconde o fato de que ela depende de milhões de servidores físicos, refrigerados 24 horas, consumindo quantidades absurdas de energia e água — o que também coloca em risco sua sustentabilidade a longo prazo.
Durante décadas, armazenamos nossa cultura em mídias físicas: fitas magnéticas, disquetes, CDs, DVDs, HDs externos. Quando algo falhava, o problema era físico — riscos, quedas, desgaste.
Hoje, a promessa da “nuvem” vende a ideia de que tudo está seguro, acessível de qualquer lugar, para sempre. Mas essa promessa é, em boa medida, uma ilusão. O que parece eterno é, na verdade, efêmero, precário e vulnerável.
Quando uma plataforma decide encerrar um serviço, apagar um catálogo, eliminar uma licença ou fechar uma loja digital, não desaparecem apenas arquivos — desaparece também a história, a cultura e a memória coletiva de uma geração inteira.
☁️ A Materialidade e o Imaterial: a falsa sensação de segurança digital
Na era da computação pessoal, a posse dos dados era um conceito claro:
- Comprávamos jogos em disquetes.
- Guardávamos álbuns em CDs.
- Armazenávamos fotos em DVDs ou HDs externos.
Esses objetos estavam fisicamente conosco. Sua degradação era previsível, mensurável e, até certo ponto, controlável. Backups serviam para isso.
Com a popularização da nuvem, streaming e serviços digitais, o conceito de posse foi substituído pelo de licenciamento temporário, regido por contratos EULAs (End User License Agreements), que, na prática, autorizam a empresa a:
- Alterar ou remover conteúdos unilateralmente.
- Encerrar serviços sem necessidade de aviso prévio.
- Revogar licenças mesmo de produtos “comprados”.
A ilusão está justamente aí: achamos que compramos, mas apenas alugamos o acesso.
🚫 Casos reais de apagamento digital – e não foram poucos
O fenômeno não é teórico. Está acontecendo, com perdas irreversíveis tanto no campo comercial quanto no social e cultural. Eis alguns casos concretos, incluindo um relato pessoal diretamente relacionado à proposta do Museu OldBits:
🎮 Nintendo Wii e 3DS: encerramento definitivo das lojas digitais em 2023. Jogos legalmente comprados e não previamente baixados foram perdidos para sempre.
📺 Filmes nas plataformas Apple TV, Amazon e Sony: milhares de títulos foram removidos das bibliotecas dos próprios clientes, sem aviso prévio e sem qualquer reembolso, expondo a fragilidade da posse digital.
🎶 Google Music (2020): encerramento completo da plataforma. Milhões de músicas pessoais armazenadas foram apagadas, mesmo que adquiridas e pagas ao longo dos anos.
🎮 PlayStation Store para PS3, PSP e PS Vita: ameaçada de encerramento em 2021, foi parcialmente revertida após pressão pública, mas com funções já comprometidas e futuro incerto.
📰 Serviços de jornais e revistas digitais: arquivos completos de edições antigas são apagados periodicamente por falta de interesse comercial, licenciamento ou decisões corporativas.
🏛️ Yahoo Groups (2020): encerramento total de uma das maiores plataformas de comunidades online da história da internet. Mais de 10 milhões de grupos contendo décadas de debates técnicos, culturais, acadêmicos e afetivos desapareceram.
📨 Google Groups (restrito desde 2022): sua função como fórum público foi eliminada, tornando inacessível grande parte de seu acervo histórico.
🧠 Orkut (2014): centenas de milhares de comunidades, fóruns técnicos, culturais e históricos foram apagados, destruindo irreversivelmente memórias coletivas da geração que viveu a internet dos anos 2000.
🔍 Google Picasa (2016): milhões de álbuns fotográficos pessoais e registros culturais foram apagados ou migrados de forma precária para o Google Photos.
🎥 Exemplos pessoais
Quando o Netflix surgiu no Brasil, uma das primeiras razões que me levou a assinar o serviço foi para assistir à série clássica "Galáctica – Astronave de Combate", do início dos anos 2000. Pouquíssimo tempo depois, sem aviso e sem alternativa, a série foi removida da plataforma. Não estava disponível em mídia física no Brasil. Nunca mais tive acesso à obra.
Da mesma forma, hoje todas as séries Star Trek estão disponíveis no Netflix, dubladas em português. Contudo, menos da metade dessa obra-prima de Gene Roddenberry foi lançada oficialmente no Brasil em mídia física. Isso significa que, no momento em que a Netflix decidir remover essas séries, desaparecerá junto o trabalho dos brilhantes dubladores brasileiros — trabalho esse que nunca foi imortalizado em mídia local.
Casos ainda mais tristes ocorrem com filmes clássicos. O filme 'O Supercérebro' (David Niven, 1969) é um exemplo: sua versão dublada no Brasil, que representava não só a obra, mas também a arte dos dubladores, simplesmente se perdeu no tempo. Foi apagada, descartada e, na prática, destruída pela negligência e desinteresse das corporações em preservar a cultura em mídia física.
🗺️ Linha do Tempo: A história do apagamento digital
Não confie na nuvem!
📅 Ano |
Evento |
Descrição |
2001 |
Encerramento do serviço Napster (1ª versão) | Primeira grande disputa sobre propriedade digital, fechando a maior rede P2P da época. |
2010 | Google Wave | Plataforma colaborativa inovadora é descontinuada, apagando anos de registros experimentais. |
2011 | Encerramento do Google Labs | Fim de dezenas de serviços e experimentos; parte dos dados e ferramentas some completamente. |
2014 | Fim do Orkut | Mais de 51 milhões de comunidades e bilhões de discussões foram apagados. |
2016 | Fim do Google Picasa | Milhões de álbuns fotográficos pessoais foram apagados ou migrados desordenadamente para o Google Photos. |
2019 | Encerramento do Google Plus | A rede social do Google foi encerrada, apagando bilhões de postagens e interações. |
2020 | Fim do Google Music | Encerramento completo; milhões de músicas pessoais e álbuns sumiram dos servidores. |
2020 | Fim do Yahoo Groups | Extinção de mais de 10 milhões de grupos; décadas de fóruns, listas acadêmicas e técnicas foram apagadas. |
2021 | Ameaça de encerramento da PlayStation Store (PS3, PSP, PS Vita) | Reversão parcial após pressão popular, mas várias funções e títulos foram perdidos. |
2022 | Restrição severa do Google Groups | Perda do acesso público a milhares de grupos técnicos, históricos e comunitários. |
2023 | Encerramento da Nintendo eShop para Wii U e 3DS | Todos os jogos, DLCs e aplicativos que não haviam sido baixados desapareceram para sempre. |
2023 | Retirada massiva de filmes na Apple TV, Sony e Amazon | Centenas de títulos sumiram das bibliotecas dos usuários sem qualquer compensação. |
2024-2025 | Retirada crescente de conteúdos clássicos de streaming | Observa-se uma aceleração no desaparecimento de filmes clássicos, séries e dublagens históricas no Netflix, Disney+, Amazon e outros. |
🔥 A cada ano, mais e mais pedaços da história digital se apagam. Não é desgaste físico. Não é falha técnica. É uma decisão empresarial, jurídica e econômica — e a consequência é a perdairreversível de parte da memória coletiva da humanidade.
⚠️ Impacto na Memória Cultural e Histórica
Este modelo gera um efeito catastrófico para a história da informática e da cultura digital:
- Obras digitais inteiras desaparecem.
- Softwares se tornam irrecuperáveis.
- Jogos, aplicativos, filmes e livros digitais somem sem deixar rastro.
- Memórias familiares, registros pessoais e dados culturais são perdidos por simples descontinuidade de serviços.
Se museus, colecionadores e instituições não atuarem, grande parte da história digital contemporânea simplesmente desaparecerá.
🔌 A nuvem tem peso, gasta energia e pode cair
Há também o fator físico:
A nuvem não é etérea. É feita de datacenters gigantescos.
Esses centros consomem energia elétrica, água para refrigeração e geram impacto ambiental.
Problemas energéticos, crises geopolíticas, falências ou mudanças de política empresarial podem simplesmente derrubar partes inteiras da infraestrutura global.
A nuvem pode ser deletada — literalmente.
🏛️ Por que Museus são essenciais?
O Museu OldBits e instituições similares cumprem um papel fundamental:
- Preservar fisicamente os computadores, consoles, mídias e acessórios.
- Guardar cópias locais de softwares, sistemas operacionais, jogos, manuais e documentos históricos.
- Documentar a história da tecnologia de maneira independente das plataformas comerciais e das grandes corporações de tecnologia.
Sem essa preservação ativa, a cultura computacional das décadas de 1970, 1980, 1990 e início dos 2000 estaria hoje praticamente perdida.
💾 Resgatando o controle da memória digital
A ideia de que "tudo está salvo na nuvem" é uma falácia perigosa. Na verdade, nunca estivemos tão perto de perder, em escala global, partes inteiras da nossa memória digital coletiva. Perda essa que pode ser até mesmo deliberada, com interesses por trás de grades corporações ou até mesmo da tirania de estratégias de controle popular governamental.
O futuro da preservação depende, paradoxalmente, de um retorno à materialidade:
- Arquivos locais.
- Cópias físicas.
- Hardware preservado.
- Dados armazenados fora da lógica das grandes plataformas.
Se no passado cuidávamos de disquetes, hoje talvez seja hora de cuidarmos dos nossos próprios servidores pessoais, mídias locais e, sobretudo, apoiarmos museus, coleções e iniciativas independentes de preservação digital.
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