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No cenário literário contemporâneo, uma tendência "inovadora" (com muitas e muitas aspas, porque isso não tem nada de inovador) surgiu com a Monochrome Books, uma empresa que propõe reimprimir clássicos literários usando tinta branca em papel preto.

Recentemente encontrei um artigo no portal IGN Brasil, no qual o autor, Viny Mathias, diz "Eu, particularmente, achei lindo demais!". Este tipo de comentário, ainda que seja de opinião, tem se tornado mais importante do que o repórter, pesquisador ou colunista buscar fatos e dados propriamente dito. Pode ser bonito, mas é bom? Vale a pena, na esfera de valores? E na esfera da usabilidade? E da produção, meio ambiente, etc?

Embora a intenção de reinventar a estética do livro impresso possa parecer atraente à primeira vista, uma análise mais profunda revela implicações ambientais e de usabilidade que desafiam a viabilidade e a responsabilidade desta abordagem.

       papel
       Fabricação de papel

Papel branco versus papel preto

O papel amplamente utilizado hoje em dia é branco por diversos fatores muito bem conhecidos, pesquisados e experimentados: a cor branca do papel reflete a luz de forma mais eficiente do que outras cores, o que melhora a legibilidade do texto impresso. A alta refletividade do papel branco permite que os olhos percebam o contraste entre a tinta e o papel de maneira clara e confortável, facilitando a leitura.

O processo de fabricação do papel, independentemente da cor utilizada, muitas vezes inclui uma etapa de branqueamento. A madeira natural e as fibras de papel contêm lignina e outras substâncias que podem dar ao papel uma cor amarelada ou acinzentada. O branqueamento, que pode ser feito com substâncias como cloro ou compostos sem cloro, remove essas impurezas e dá ao papel uma cor branca mais pura. Este processo também melhora a qualidade e a uniformidade do papel. Todos os papéis para livros passam por este processo, independente da sua cor final, quando é inserida a pigmentação que oferece a cor final do papel.

Além disso, o papel branco é branco para facilitar o seu uso:

  • O papel branco oferece uma tela neutra para impressão e escrita. Ele não interfere nas cores da tinta utilizada, permitindo uma reprodução mais precisa das cores desejadas. Isso é particularmente importante para impressão a cores, onde a precisão e a clareza das cores são essenciais.
  • Historicamente, o papel branco tem sido associado à limpeza, à clareza e à sofisticação. Essa preferência estética e cultural tem raízes profundas e continua a influenciar a demanda por papel branco em muitas aplicações, incluindo livros, revistas, documentos oficiais e arte.
  • Além do branqueamento, o papel pode ser tratado com revestimentos ou aditivos para melhorar suas características de impressão, como brilho, absorção de tinta e suavidade. Esses tratamentos geralmente contribuem para a aparência branca e brilhante do papel.

Em resumo, o papel é branco principalmente devido à sua eficiência em refletir a luz, proporcionando uma leitura confortável e clara, ao processo de branqueamento que remove impurezas, à sua versatilidade como substrato para impressão e escrita, e às preferências estéticas e culturais.

negro de fumo      
 Fabricação de tintas
     

Fabricando tintas

A tinta que será utilizada para escrever no papel também exige vários processos químicos. O processo de produção de tinta, incluindo a tinta branca, tem um impacto ambiental considerável, que merece atenção. A produção de tinta tem uma grande pegada de carbono, pois o processo de fabricação exige muita energia, e o transporte de materiais e produtos acabados contribui para as emissões de carbono​​. Além disso, os produtos químicos usados na produção de tinta podem ser prejudiciais ao meio ambiente. Muitos desses produtos químicos são tóxicos e podem contaminar solo e fontes de água se não forem descartados adequadamente​​.

No entanto, práticas de produção de tinta mais sustentáveis estão surgindo. Fabricantes de tinta estão implementando práticas mais sustentáveis para minimizar sua pegada de carbono e reduzir o desperdício. Ingredientes ecologicamente corretos, como tintas à base de vegetais e de soja, estão sendo usados no processo de produção. Essas alternativas têm um impacto ambiental menor do que as tintas tradicionais à base de petróleo, que liberam compostos orgânicos voláteis (VOCs) na atmosfera​.

Além do uso de ingredientes ecologicamente corretos, fabricantes de tinta também estão reduzindo sua pegada de carbono implementando práticas energéticas eficientes. Isso inclui o uso de fontes de energia renováveis, como energia solar e eólica, para alimentar suas instalações de produção. Alguns fabricantes de tinta estão até investindo em programas de compensação de carbono para equilibrar as emissões restantes​​.

      negro de fumo
       Negro de fumo

Impacto Ambiental do Negro de Fumo

O negro de fumo, um pigmento preto derivado da combustão incompleta de hidrocarbonetos, é um composto de suma importância para toda a indústrica e para a nossa vida moderna. O negro de fumo é um dos componentes fundamentais da carga de reforço para a borracha, das tintas, estabilizador de Ultra Violeta e agente condutivo ou isolante em uma variedade de aplicações em borracha, plástico, tinta e revestimento. A quase totalidade de tudo ao nosso redor que tem a cor preta contém negro de fumo.

Porém, o uso do negro de fumo tem levantado sérias questões ambientais. Ocorre que, atualmente, a produção de negro de fumo libera dióxido de carbono e outros gases poluentes em grandes quantidades. A produção de negro de fumo também gera matéria particulada fina e compostos orgânicos voláteis (VOCs), prejudicando a qualidade do ar e a saúde humana. Além disso, contém hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), substâncias cancerígenas atualmente regulamentadas na Europa​​.

Ainda que as pesquisas com alternativas mais sustentáveis ao negro de fumo, como pigmentos pretos à base de biomassa como o BioBlack TX da Nature Coatings, ofereçam uma pegada de carbono negativa e são derivados de resíduos de madeira industrial, uma fonte renovável e abundante​, apontando para um futuro menos poluente na produção de pigmentos, essas tecnologias ainda não estão disponíveis para a indústria, então a impressão em massa de livros em papel preto, com a necessidade do uso abundante de negro de fumo, permanece uma escolha ambientalmente questionável. Uma coisa é utilizar-se alguns mililitros de tinta preta para escrever um livro em papel branco, outra completamente diferente é abusar do pigmento preto em um papel que será impresso em branco só "porque é bonitinho" (questionável, completamente questionável).

A Monochrome Books, em seu site, informa que toma ações de "sustentabilidade", como parcerias com uma organização regional de fomento ao emprego, saúde e educação, assim como de plantio de árvores. Segundo a Monochrome Books, "para cada livro vendido, é plantada uma árvore". Ou seja: vamos poluir e, em contrapartida, plantamos uma árvore para justificar nossa poluição. Só que eu vou contar um segredo: a natureza tem a capacidade de plantar árvores em quantidade muito maior do que quaisquer iniciativas como esta. Poluir de um lado e plantar uma árvore para justificar essa ação me parece mais como uma desculpa para massagear o próprio ego do que uma ação sustentável de fato.

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Usabilidade e Design: O Problema do Contraste

Do ponto de vista do design e da usabilidade, livros impressos em papel preto com tinta branca podem ser desafiadores para a leitura prolongada. Embora a Monochrome Books argumente que essa escolha reduz a fadiga ocular, a realidade do contraste no design sugere o contrário. O alto contraste de texto branco sobre fundo preto pode causar estresse visual, especialmente em ambientes com pouca luz, onde o brilho do texto branco pode ser excessivo e desconfortável para os olhos. Além disso, para pessoas com certas deficiências visuais, como a catarata, esse esquema de cores pode dificultar significativamente a legibilidade.

      juiceiro
       Juiceiro: aprenda com os erros

O preço

Esta parte eu tenho pouco o quase nada de dificuldade para escrever. O artigo de Viny Mathias cita dois exemplos de livros desta empresa, por meio do Kickstarter: 'Meditações', de Marco Aurélio, e 'O Retrato de Dorian Gray', de Oscar Wilde. Ambos pelo preço de US$89, algo próximo dos R$430 na conversão de moedas de hoje. Os mesmos títulos de livros, em capa dura, originais, são vendidos na Amazon por cerca de R$25. Você paga 20x o preço do livro só pelo modismo. Nem vou colocar o link do Kickstarter aqui porque isso me parece mais um caça-níqueis pega-trouxa do que algo feito de fato para inovar.

Lembram do caso do Juiceiro, uma malandragem caça-níqueis que pegou muito trouxa pelo Kickstarter?

Priorizando a Sustentabilidade e a Acessibilidade

Em conclusão, a abordagem da Monochrome Books, embora anuncie ser inovadora, negligencia considerações críticas de sustentabilidade e acessibilidade. À medida que avançamos em direção a um futuro mais consciente do ponto de vista ambiental, é imperativo que as inovações no campo da literatura e do design gráfico se alinhem com princípios ecológicos e de inclusão. Ao invés de adotar modismos estéticos que comprometem o meio ambiente e a usabilidade, devemos nos esforçar para equilibrar inovação com responsabilidade, criando produtos que sejam não apenas visualmente atraentes, mas também ecologicamente sustentáveis e acessíveis a todos os leitores.

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